ECONOMIA
Em campanha eleitoral, presidente argentino disse que não faria negócios com a China e 'nenhum comunista'. No governo, passou a se referir ao país como 'parceiro comercial muito interessante' e tem encontro marcado com Xi Jinping nesta terça-feira, no G20. Argentina x China: Javier Milei mudou drasticamente de discurso sobre o gigante asiáticoO presidente da Argentina, Javier Milei, terá um encontro bilateral com o presidente chinês, Xi Jinping, nesta terça-feira (19), no G20. A reunião, prevista para as 10h20, é mais um marco da drástica mudança de postura do argentino em relação ao país asiático.Conhecido por discursos inflamados e posicionamentos polêmicos, Milei direcionou duras críticas à China durante sua campanha eleitoral. Chamou os asiáticos de "comunistas" e chegou a dizer que não faria negócios com o país.Perto de completar um ano de governo, o tom agora é outro. Em entrevista ao programa de TV de Susana Gimenez, no fim de setembro, Milei se referiu à segunda maior economia do mundo como "parceira comercial interessante" e confirmou que irá ao país em janeiro de 2025."Fiquei positivamente surpreso. É um parceiro comercial muito interessante porque eles não exigem nada, só pedem para não serem incomodados", declarou.A "cambalhota" retórica de Milei também foi tema de reportagens da imprensa argentina, mas a mudança de discurso não surpreende o mercado. Especialistas ouvidos pelo g1 dizem que a postura do presidente argentino reforça seu perfil pragmático, em especial diante da forte crise financeira que o país enfrenta — e da consequente necessidade de recursos para reverter o cenário.Como mostrou o g1 em agosto, a crise envolve temas como reservas internacionais, contas públicas, câmbio, controle de capitais e mercado de crédito. Além de ter pouco dólar em caixa, o país acumula amplas dívidas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), e precisa de parceiros para fazer a roda girar.Diante do cenário, a China é uma importante fonte de recursos para a Argentina. Os países mantêm um acordo de swap cambial, por meio do qual os sul-americanos têm acesso à moeda estrangeira que falta em suas reservas. (entenda mais abaixo)Mas a discussão vai além: a relação entre Argentina e China também traz elementos da geopolítica, em meio à guerra comercial travada entre os asiáticos e os Estados Unidos. Emprestar recursos aos sul-americanos e manter uma relação de troca com um governo de direita — como o do ultraliberal Javier Milei — são ações que reforçam a imagem de uma China forte e influente no cenário internacional.Entenda, nos tópicos abaixo, a mudança de discurso de Milei:Pragmatismo e swap cambial;Balança comercial e reservas internacionais;Calotes, dívidas com o FMI e peças da geopolítica;Aperto fiscal, inflação e aumento da pobreza.Presidente da Argentina, Javier Milei, durante a apresentação do orçamento do país para 2025 no Congresso Nacional, em Buenos Aires.ReutersaPragmatismo e swap cambialEspecialistas ouvidos pelo g1 destacam o perfil pragmático de Milei. Apesar dos discursos inflamados, o argentino demonstrou, desde o início do governo, optar por medidas menos radicais do que o tom adotado durante a campanha eleitoral."Milei tem uma retórica muito agressiva. Mas, na hora de desenhar os passos efetivos de política econômica e internacional, ele acaba sendo um pouco menos extremo do que parece", analisa Adriana Dupita, economista de mercados emergentes da Bloomberg Economics.O comportamento mais respeitoso do presidente argentino em relação à China acontece enquanto o país sul-americano enfrenta dificuldades para acumular reservas internacionais e se vê obrigado a manter um controle de capitais.?? As reservas são valores que um país possui em moeda estrangeira. Funcionam como um "seguro" para fazer frente a dívidas no exterior e a choques econômicos, como a desvalorização acentuada da moeda local. São parte importante para a conquista de confiança do mercado financeiro e da atração de investimentos.?? Já o controle de capitais administra a taxa de câmbio e, na prática, restringe as compras de dólares por pessoas e empresas. O objetivo da medida — já adotada nos últimos anos no país — é frear a fuga de recursos de investidores de dentro do país para o exterior, e proteger as reservas. Esse controle, no entanto, também tem efeitos negativos, como o surgimento do mercado paralelo de dólar, como o "dólar blue"."A Argentina percebeu que não vai ser tão fácil conseguir os dólares que precisa para deixar de usar o controle de capitais. Então, isso faz com que Milei adote gestos mais abertos de aproximação com a China", diz Dupita.Os asiáticos são importantes por terem um acordo de swap cambial com o governo Argentino: os chineses disponibilizam ao país sul-americano valores em yuan, a moeda chinesa, e os recursos são usados pelos argentinos para, por exemplo, pagamentos da dívida com o FMI.O acordo, que foi iniciado em 2009 e estabelece o uso de yuan nas relações comerciais entre os dois países, precisa ser renovado de tempos em tempos. A mais recente prorrogação ocorreu em junho deste ano, no valor de US$ 5 bilhões (35 bilhões de yuans), por 12 meses.Os valores ficam depositados no Banco Central da Argentina e compõem as reservas internacionais do país. Em troca, o país sul-americano faz a transferência de pesos ao BC chinês, explica Dupita.Argentina: pobreza 15,7 milhões de pessoas; situação afeta 52,9% da população"Milei já foi definido como alguém que, quando vê um muro, acelera, mas freia antes de chegar", diz o economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV Ibre, ao analisar o desencontro entre as declarações e as medidas do presidente argentino.A primeira movimentação pragmática de Milei em direção à China ocorreu apenas dois dias após ele tomar posse, em 12 de dezembro. Na ocasião, o argentino enviou uma carta ao presidente da China, Xi Jinping, para renovar o acordo de swap. Antes da renovação de swap neste ano, o último acordo havia sido feito no fim da gestão do ex-presidente Alberto Fernández. O vencimento estava previsto justamente para a gestão Milei, o que exigiu a postura pragmática do novo presidente. Caso a mais recente renovação não tivesse ocorrido, diz Giambiagi, o governo argentino teria que pagar bilhões de dólares em rolagem de dívida para a China, o que dificultaria ainda mais a situação do país."Então, Milei irá [visitar o país asiático] não só para agradecer formalmente a reprogramação feita, mas também para solicitar uma nova e jogar os prazos mais para a frente", afirma o especialista.Voltar ao início.Balança comercial e reservas internacionaisAlém da dependência dos recursos recebidos por meio do acordo de swap cambial, a China é a segunda maior parceira comercial da Argentina — atrás apenas do Brasil, que Milei também chegou a criticar —, o que ajuda a explicar a postura do presidente.De janeiro a setembro, os argentinos exportaram US$ 5 bilhões para os asiáticos, o que representa uma alta de 24,6% em relação ao mesmo período de 2023. A China corresponde a 8,5% do total das exportações do país sul-americano. "A China continua, e seguirá sendo, um parceiro comercial relevante para a Argentina, tanto pelo comércio exterior quanto pelos investimentos", destaca Federico Servideo, diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira de São Paulo.O governo argentino busca elevar as exportações e diminuir as importações para deixar a balança comercial no azul. Exportar mais e importar menos significa mais dólar entrando na economia do país — um dos processos importantes para a melhora das reservas e da crise cambial.De fato, o saldo da balança comercial tem sido positivo: em setembro, por exemplo, as vendas argentinas para o exterior subiram 20,6% em comparação com o mesmo mês de 2023, enquanto as importações caíram 8,8% no mesmo período.Veja o histórico abaixo.Como tentativa de alavancar suas reservas em moeda estrangeira, Milei também implementou um aumento provisório do imposto de importações (chamado de "Pais", que incide sobre a compra de dólares).Quando ele assumiu o cargo, em dezembro de 2023, o colchão de dólares da Argentina era de pouco mais de US$ 21 bilhões. O valor chegou a US$ 30 bilhões em abril deste ano, uma alta de mais de 40%. Em setembro, no entanto, já caiu para cerca de US$ 28 bilhões.Veja abaixo.Tanto a melhora da balança comercial quanto o acordo de swap com a China buscam o mesmo resultado: aumentar a liquidez — ou seja, o dinheiro disponível para operações — e melhorar o saldo das reservas internacionais, formado por dinheiro estrangeiro. "A renovação do swap de moedas pela China, as compras de soja (...) e o acordo com o FMI são aspectos de extrema relevância para o governo argentino, que, ao mesmo tempo, mantém seu alinhamento geopolítico com Israel e os Estados Unidos", destaca Federico Servideo. Voltar ao início.Calotes, dívidas com o FMI e peças da geopolíticaA Argentina acumula ao menos nove calotes em sua história. O último ocorreu em 2020, quando o país deixou de pagar cerca de US$ 500 milhões a credores em prestações já atrasadas de dívidas, chamadas no jargão do mercado de "cupons de bônus".Ao FMI, o país deve mais de US$ 40 bilhões — mais do que todas as reservas do país. Os valores são de um programa de empréstimo tomados pelo ex-presidente Mauricio Macri, que se arrasta há anos e cujos acordos foram rediscutidos no início da gestão de Javier Milei.O resultado das novas tratativas foi a liberação de mais US$ 4,7 bilhões à Argentina em fevereiro deste ano. Na ocasião, o FMI informou ter concedido os valores para "apoiar os claros esforços políticos das autoridades e restabelecer a estabilidade macroeconômica" do país.É essa sequência de concessões de crédito e calotes que tem tornado a Argentina uma grande dor de cabeça para o FMI, ressalta Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV Ibre. "Foram quatro calotes em quatro décadas. Uma coisa impressionante."O histórico de mau pagador tem intensificado as restrições para concessão de crédito ao país sul-americano — o que, por sua vez, aumenta a dependência dos recursos oriundos do acordo de swap cambial com a China."A Argentina quer dinheiro do FMI, e o fundo está mais restritivo porque não recebeu de volta o que emprestou. Quando Milei 'pisca' para China, é uma forma de dizer [ao FMI e aos EUA]: 'Vocês não me ajudam? Olha o que posso fazer'", analisa Giambiagi."Ter um governo de direita te devendo, te elogiando e, assim, conseguir cutucar o seu grande rival [EUA] por alguns trocados de empréstimo. O que mais você quer nesse jogo geopolítico?", continua o especialista, que ressalta se tratar de mais uma peça na "engenharia complexa da relação entre Estados Unidos e China no tabuleiro da geopolítica mundial".Adriana Dupita, da Bloomberg Economics, destaca outra estratégia da China: a de fortalecer seus investimentos em infraestrutura na América Latina — e, com isso, ter acesso a mercados de minerais raros.O movimento inclui, por exemplo, interesses sobre a reserva de lítio (metal utilizado para fabricação de baterias de eletrônicos) que existe na Argentina, explica a especialista. "Acontece que Milei tem uma proximidade ideológica com Donald Trump. Uma vitória do republicano nas eleições dos EUA poderia, eventualmente, dificultar o acesso a esses minerais. (...) É também de olho nesse mercado que a China busca manter relação com a Argentina", diz.Voltar ao início.Argentinos estão comendo menos carneO momento econômico e social do paísJavier Milei completou 10 meses de governo em uma Argentina castigada por forte crise econômica e social, com dívidas elevadas, câmbio deteriorado, reservas internacionais escassas e inflação na casa de 209%.Um dos principais desafios do presidente argentino, que assumiu a Casa Rosada no fim do ano passado, é justamente aliviar a crise, que se arrasta há décadas no país. O foco inicial de Milei foi o corte de gastos e o ajuste das contas públicas. A ideia é que, melhorando a parte fiscal, a economia argentina dê mais confiança aos investidores, destrave investimentos privados e passe a andar nos trilhos.Para a população, no entanto, as medidas têm sido doloridas. O chamado "Plano Motosserra" — referência ao corte de gastos — determinou uma desvalorização do câmbio, paralisação de obras públicas e o corte de subsídios em tarifas de serviços essenciais.Em outra perspectiva: a inflação desacelerou, mas a base de comparação também subiu. Desde o início do ano, os preços de água, gás, luz e transporte público estão bem mais altos.O cenário ajudou a empurrar mais pessoas para a pobreza. O número de argentinos nessa situação aumentou no primeiro semestre deste ano e chegou a 15,7 milhões, segundo o Indec, "o IBGE" do país. Os dados mostram mais da metade da população (52,9%) abaixo da linha da pobreza.Voltar ao início.