Área econômica estuda agenda de corte de gastos, que deve ser proposta nas próximas semanas. Analistas a consideram importante para conter a dívida e evitar alta dos juros, que penalizam investimentos. Manifesto critica o mercado e as políticas de austeridade fiscal. Governo está avaliando propor cortes em despesas obrigatórias dos ministérios para preservar o arcabouço fiscal
Ana Volpe/Agência Senado
A equipe econômica do governo tem se debruçado nas últimas semanas sobre uma agenda que vem sendo cobrada por investidores e setores da política desde o começo do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: o corte de gastos públicos.
Por enquanto, as medidas em estudo ainda não foram detalhadas, o que tem gerado nervosismo no mercado financeiro — com pressão sobre o dólar, queda da Bolsa de Valores e alta dos juros futuros.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que entende a "inquietação" do mercado, mas acrescentou que o governo apresentará propostas para manter o arcabouço fiscal operante. A expectativa é que as medidas sejam apresentadas nas próximas semanas.
"A dinâmica das despesas obrigatórias tem que caber dentro do arcabouço. A ideia é fazer com que as partes não comprometam o todo que o arcabouço tem, a sustentabilidade de médio e longo prazo", declarou Haddad, nesta semana.
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Surgiram notícias de que o governo estaria considerando mudanças no seguro desemprego e na multa de 40% de demissão sem justa causa, algo que foi negado pelo Ministério do Trabalho.
O ministro Luiz Marinho ameaçou até deixar o cargo caso se sinta agredido, ou seja, na hipótese de mudanças serem encaminhadas sem discussão prévia com ele.
Economistas consideram a agenda de cortes de despesas importante para conter a dívida e evitar alta dos juros, que penalizam investimentos produtivos e o consumo da população. Por outro lado, um manifesto critica o mercado e as políticas de austeridade fiscal (veja abaixo essa reportagem).
O que pode acontecer sem o corte de gastos?
A explicação de analistas é que, sem o corte de gastos obrigatórios (por meio do envio de propostas ao Congresso Nacional), o chamado "arcabouço fiscal", a nova regra para as contas públicas aprovada no ano passado pelo governo Lula, está em risco.
Isso porque o espaço gastos livres dos ministérios, que englobam políticas públicas importantes, como bolsas de estudo, fiscalização ambiental e o farmácia popular por exemplo, está sendo comprimido (e pode acabar no futuro próximo) por despesas obrigatórias, como a Previdência Social.
E a previsão do TCU é que, se nada for feito, o espaço para essas políticas importantes para a população, acabarão nos próximos anos, paralisando a máquina pública.
Com o arcabouço fiscal em risco, podendo ser abandonado, não haveria mais uma regra que controlasse as contas públicas, o que, por sua vez, elevaria mais a dívida do setor público, que já é alta para o padrão dos países emergentes.
O próprio Banco Central cita o aumento de gastos em seus comunicados, explicando que isso também pressiona a inflação.
Segundo a instituição, a "percepção mais recente dos agentes de mercado sobre o crescimento dos gastos públicos e a sustentabilidade do arcabouço fiscal vigente, junto com outros fatores, vem tendo impactos relevantes sobre os preços de ativos [dólar, juros futuros e bolsa de valores] e as expectativas [de inflação]".
Essa dúvida sobre as contas públicas, que está sendo chamada pelo mercado financeiro de "risco fiscal", já está cobrando seu preço, com alta do dólar e dos juros futuros.
Com o possível fim do arcabouço fiscal, explicam analistas, a pressão poderia ser maior ainda sobre os juros futuros, aqueles que servem de base para as operações dos bancos, o que resultaria em taxas mais elevadas para consumo e investimentos.
E juros mais altos, por sua vez, também piorariam as contas públicas, pois o Tesouro Nacional precisaria pagar taxas maiores na emissão de títulos públicos, a chamada rolagem da dívida.
O governo entraria no que os analistas chamam de um "ciclo vicioso", ou seja, paga juros maiores por conta da dívida alta, o que também elevaria ainda mais o endividamento - que já grande para o padrão de países emergentes (veja abaixo).
Ajuste 'necessário e urgente'
De acordo com os economistas Armando Castelar Pinheiro e Silvia Matos, em análise contida no boletim Macro de outubro da FGV Ibre, o ajuste nas contas públicas é "necessário e urgente".
"Desde o final de 2022, o Brasil vem experimentando uma sensível deterioração fiscal, com forte aumento dos gastos e persistente elevação da dívida pública. Isso sem que sejam adotadas medidas capazes de dar resposta adequada aos riscos daí decorrentes", diz o boletim.
"Pelo contrário, o que se viu foram sucessivas propostas de mais e novos gastos, como se o problema não existisse", prosseguem os economistas.
Com a persistência do problema, eles avaliaram que o "risco fiscal" (relativo às contas) voltou ao centro das atenções dos agentes de mercado.
"E passou a fazer preço, como se diz, com a forte elevação da curva de juros e a desvalorização do real, mesmo com o ciclo monetário no Brasil [com alta de juros] indo na contramão do que se observa hoje nos EUA", afirmaram.
Afirmam que a "piora do humor internacional", com notícias negativas sobre as eleições nos Estados Unidos e sobre a economia chinesa, ajuda a explicar a piora na curva de juros e a alta do dólar.
Mas observaram que isso tem acontecido apesar de a agência de classificação de risco Moody's ter elevado a nota de crédito soberano do Brasil (o que, em tese, deveria melhorar os indicadores).
"Mesmo com sinais de desaceleração do gasto e de menor estímulo fiscal, estamos vivenciando uma nova rodada de desconfiança dos agentes de mercado. Diversas manobras fiscais e a ausência de contenção de gastos abalam a credibilidade", dizem os analistas, no texto.
Armando Castelar Pinheiro e Silvia Matos, do FGV Ibre, concluíram que a "grande dúvida" é saber se haverá apoio político para tais medidas.
"Infelizmente, revisões sobre a regra de reajuste do salário mínimo e a desvinculação das aposentadorias, pensões e BPC do mínimo foram descartadas. E essas são medidas que dariam um impacto relevante na trajetória de gastos ao longo do tempo. Resta saber o que de fato será apresentado e aceito do ponto de vista político", afirmaram.
Manifesto contra 'pacote antipopular'
Enquanto o corte de gastos não é detalhado pelo governo, um manifesto com nomes de acadêmicos, economistas, pesquisadores, comunicadores populares, sindicalistas e parlamentares foi lançado contra as "políticas de austeridade fiscal" do governo federal.
Entre eles, estão Vladimir Safatle, Ricardo Antunes, Lena Lavinas, Paulo Nakatani, ex-ministros como Roberto Amaral e José Gomes Temporão, além de parlamentares como Luiza Erundina, Sâmia Bomfim, Glauber Braga, Tarcísio Motta, Chico Alencar e Luciana Genro, presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
"Desde o início, o Novo Arcabouço Fiscal foi concebido para impor limites rígidos aos gastos sociais e aos investimentos públicos, enquanto protege as despesas financeiras, especialmente o pagamento de juros que beneficiam os grandes rentistas", diz o documento.
Segundo o manifesto divulgado, as medidas contam com o apoio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da "grande imprensa", que, diz o documento, "têm defendido abertamente que, para manter o arcabouço fiscal, é necessária uma redução estrutural dos direitos sociais".
"Nós, em contraste, defendemos que o Novo Arcabouço Fiscal seja alterado ou revogado para que os direitos sociais não apenas sejam preservados, mas também expandidos, garantindo a inclusão e a proteção da população mais vulnerável", concluem os signatários.
O que pode ser cortado?
Analistas consultados pelo g1 nos últimos anos listaram uma série de propostas que podem ser enviadas ao Legislativo. Para terem validade, teriam de ser aprovadas pelo Congresso Nacional. Veja algumas propostas:
Redução de gastos com servidores, por meio de uma reforma administrativa;
Contenção de gastos previdenciários, por meio de uma nova reforma da Previdência;
Reforma de gastos sociais, por meio da integração de políticas públicas;
Mudanças ou o fim do abono salarial;
Revisão de vinculações, como o piso da saúde e educação à receita, e dos benefícios previdenciários e assistenciais (como o seguro-desemprego) do salário mínimo.
Estas são consideradas reformas estruturantes dos gastos. Entretanto, esse tipo de reforma costuma ser impopular. Dependendo do que for proposto:
Uma eventual proposta de reforma da Previdência Social poderia elevar a idade mínima para aposentadoria, acabar com a diferença de idade entre homens e mulheres ao se aposentar, ou mudar as regras da aposentadoria rural, entre outros.
Uma reforma administrativa poderia propor o fim de alguns direitos de servidores, como rendimentos acima do teto constitucional, ou até mesmo propor o fim da estabilidade para algumas categorias, entre outros pontos.
Propostas de desvinculação, por exemplo, poderiam desatrelar os gastos em saúde e educação das receitas (regra atual), o que pode gerar perda de recursos para essas áreas.
As desvinculações também poderiam desatrelar as despesas previdenciárias do salário mínimo, que, pelas regras atuais, têm crescimento real (acima da inflação). Ou seja, os benefícios podem ser menores do que o salário mínimo.
As desvinculações também poderiam desindexar outros benefícios, como seguro-desemprego e abono salarial do salário mínimo. Ou seja, os benefícios podem ser menores do que o salário mínimo.
Integração de políticas públicas pode significar a unificação de regras para benefícios, como, Auxílio Brasil, Auxílio Gás, Auxílio reclusão, Farmácia Popular, salário maternidade, salário família, seguro defeso, BPC, dentre outros. O objetivo seria evitar que pessoas recebam benefícios de forma cumulativa.