Renan Santos, que tem 23 anos e estudou na rede pública da Grande SP, espera ser um exemplo para outros jovens como ele. Renan estudou na rede pública e mora na periferia de Ferraz de Vasconcelos
Robson Foiadelli/Divulgação
O sonho de desbravar o mundo, levando na mala o debate das políticas públicas, está virando realidade para Renan Santos, de 23 anos. Morador da periferia de Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, ele está entre os escolhidos para representar o Brasil no International Student Festival in Trondheim (ISFIT 2023), um dos mais importantes congressos estudantis.
O evento, que ocorre na Noruega nas próximas semanas, tem como tema a polarização e oferece debates, palestras e encontros para participantes de várias nacionalidades. Uma conquista que ainda é distante demais para a maioria dos estudantes que vieram da rede pública, como Renan, e que abre um debate sobre a importância do incentivo e da criação de novas oportunidades educacionais.
“Eu sou o primeiro de tudo aqui na minha família. O primeiro a ter os estudos, a aprender inglês, ir para o exterior. É uma dor, mas a gente vira uma inspiração pra quem está ao nosso redor. Hoje eu acho crucial falar de onde eu vim e pra onde eu estou indo. Sem sombra de duvidas é revolucionário. Na minha família, no meu entorno, eu vejo que isso traz resultados”, comenta o jovem.
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O ISFIT é realizado a cada dois anos e seleciona estudantes que são exemplo de liderança social. Na inscrição de 2023, os candidatos deveriam escrever uma redação ligada ao tema do festival. Renan escolheu falar das polarizações políticas e de saúde pública que marcaram o país nos últimos anos. Assunto mais do que atual e que os brasileiros conhecem bem.
“É um festival que acontece desde 1990 e é bem tradicional na Europa. Eles sempre convidam palestrantes importantes, como Emma Watson e Hilary Clitton. Na inscrição, falei que a polarização é uma coisa que está muito atravessada na realidade brasileira. Tivemos a questão das vacinas, a questão da educação sexual nas escolas e até eleições”, relata.
A abordagem garantiu a tão esperada aprovação. Além do passe livre para o evento, Santos também terá as despesas de hospedagem, alimentação e transporte local cobertas. De acordo com os organizadores, ao todo foram selecionados 31 brasileiros, sendo que parte deles vive no exterior. O congresso começa no dia 9 e vai até 19 de fevereiro.
Sonho distante, busca constante
Jovem de Ferraz de Vasconcelos já esteve no escritório da Organização das Nações Unidas (ONU)
Arquivo Pessoal
Essa não é a primeira vez que Renan Santos se inscreve em uma seleção internacional. Pelo contrário: muitas respostas negativas vieram antes do "sim". O estudante de políticas públicas não se envergonha e até acredita que os "nãos" tenham seu papel, afinal, além do ensinamento de cada tentativa, mostram que é preciso ter persistência.
Hoje ele até lista os processos que participou. Entre as reprovações estão pelo menos oito. “Desde muito cedo comecei a me engajar socialmente. Em 2013 eu fui pra Conferência Nacional Infanto Juvenil pelo Meio Ambiente. Em 2015 me inscrevi no programa Jovens Embaixadores, promovido pela Embaixada dos EUA, mas não passei”.
“Mas foi conhecendo esse programa que eu vi que existia um mundo de oportunidades internacionais e comecei a sonhar com isso. Desde então, sempre tento saber quais processos seletivos estão acontecendo e de quais posso participar”, destaca.
Das experiências, o jovem tirou aprendizados e até desenvolveu métodos para ir bem nas seleções. “Uma estratégia é estudar o que o programa está pedindo. Essas oportunidades sempre buscam mais ou menos a mesma coisa, que são pessoas que se destacam na sua comunidade, que têm reconhecimento acadêmico, boas notas”.
Outro ponto importante é ser dono da própria história, desde os antepassados, considerando pontos fortes e fracos. “Sempre falo, e não é mentira, de como eu vivo em uma região periférica. Conto que meus pais não concluíram nem o ensino fundamental. O que eu faço hoje é muito transgressor e revolucionário pra minha história. É isso que a gente tem que contar”, ressalta o jovem.
Renan em palestra sobre impacto social da Votorantim
Arquivo Pessoal
Renan diz que o inscrito também deve mostrar que sua seleção vale a pena. No caso de processos que destacam a consciência social, falar dos feitos na própria comunidade, de forma bem estruturada e objetiva, é bem visto. “Esse programas gostam muito de ouvir métricas, quantidades. Porque uma coisa é eu falar que impactei várias vidas a partir do programa de voluntário de uma ONG. Só que eles querem ouvir, em números exatos, quando a gente participou do projeto, quantas pessoas foram impactadas, o que aconteceu depois. Eles querem ouvir tudo na prática, entender como nós tentamos mudar a realidade. É sobre falar de como somos agentes de transformação social”, complementa.
Assim como em uma entrevista de emprego, não vale mentir. Por isso, o morador de Ferraz de Vasconcelos lembra que quem sonha em conquistar uma chance como essa deve, desde cedo, desenvolver o senso do coletivo, se envolvendo em iniciativas que chamam a atenção, e ter a genuína vontade de fazer do mundo um lugar melhor.
Não há mérito sem oportunidade
Embora se orgulhe da própria conquista, Renan lamenta que sua história seja tão incomum entre a grande maioria dos jovens brasileiros. Concluir a faculdade em uma universidade pública, estudar outro idioma e viajar para fora do país é para poucos e, para quem vive na periferia, parece até impossível.
“No Brasil, quem fala inglês fluente são as pessoas com poder executivo. São pessoas que estudam desde jovem, fizeram intercâmbio. A gente acaba se vendo como não apto a essas oportunidades. Até hoje eu passo por isso. Quando olho meus colegas, vejo o contexto que eles estão, eu vejo que é um contexto muito mais privilegiado que o meu”, reflete.
“É um desafio porque não se sentir pertencente nesses espaços de poder e tomada de decisão é muito real. A gente tem uma sociedade muito desigual. Quem teve mais oportunidade vai se destacar”.
Para ele, não existe mérito sem oportunidade. Pior ainda: muitos sequer ficam sabendo das poucas oportunidades que existem. Santos reconhece, por exemplo, que os estudos nunca foram uma prioridade dentro de casa. Não que os pais não quisessem, mas porque nunca foram ensinados sobre o poder enriquecedor do conhecimento.
Exatamente por isso, elogia processos que oferecem vagas exclusivas para pessoas em vulnerabilidade social, como pretos e pardos, estudantes de escola pública ou de baixa renda. Também tem se dedicado para levar o espírito desbravador adiante. Aos poucos, vira referência para aqueles que nem imaginavam que poderiam sonhar tão alto.
“Meus pais não estudaram, pararam na terceira série do fundamental, e nem me incentivavam, mas não era por mal. Eles não sabiam que isso era possível. Quem me inspirou foi um primo que me chamou pra estudar inglês quando eu tinha 13 anos. Eu resolvi seguir e foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida”.
“[Com isso] consegui realizar um processo de mobilidade social na minha família. Consegui ter um acesso cultural e de lazer que nunca foi possível na minha família. [Hoje] faço algumas palestras e sempre volto na escola pra falar com estudantes. Comento que a gente tem que se informar. Não dá pra sonhar com o que a gente não conhece”.
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