Quem convive com a condição e não atende aos estereótipos atribuídos ao TEA afirma ser impactado diariamente pelas invalidações. Dia Mundial da Conscientização Sobre o Autismo é celebrado neste domingo (2). Pessoas com TEA compartilham histórias de capacitismo
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Na fila do supermercado, os olhares constrangem. Logo começam os sussurros, que vão ficando mais altos e até parecem indiretas. "Aqui é preferencial", diz uma voz em tom de aviso, mas a mãe já sabe como responder: "sim, minha filha é autista". "Nossa, mas ela é tão linda! Como pode ser autista?", rebate o questionador.
O preconceito disfarçado de elogio é só uma das falas no roteiro vivido, corriqueiramente, por quem não atende aos estereótipos atribuídos ao Transtorno do Espectro Autista (TEA). O pouco conhecimento sobre a condição, que se manifesta no neurodesenvolvimento, é responsável por cenas como essa, cheias de capacitismo – preconceito contra pessoas com deficiência.
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Diferentemente do que ocorre em outras síndromes e transtornos, o TEA não acarreta características físicas. Em algumas pessoas pode ser até imperceptível para quem vê de fora, mas por dentro elas não têm dúvida. Apesar disso, precisam lidar com quem tenta invalidar o diagnóstico por pura desinformação (entenda mais sobre autismo abaixo).
Há, inclusive, quem deixe de desfrutar dos próprios direitos por medo de enfrentar essas situações. No Dia Mundial da Conscientização Sobre o Autismo, celebrado neste domingo (2), o g1 compartilha relatos de quem vive no espectro e precisa se reafirmar todos os dias para deixar claro que o autismo não tem 'cara'.
"Mas ela é tão linda, nem parece autista"
Andressa tem 16 anos e é filha da advogada Andrea Dul
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“Acontece de maneira corriqueira. Eu falo para as pessoas que minha filha é autista e respondem: "mas ela é tão linda, nem parece autista". Autista não pode ser bonito? Falam também que ela "não tem cara de autista". Aí eu pergunto: "qual a cara de autista?". A gente tem que ficar explicando”, relata Andrea Dul, mãe de Andressa, de 16 anos.
A adolescente recebeu a confirmação ainda na primeira infância e, desde então, convive falas como essa. A mãe atribui os episódios aos estereótipos que, por muito tempo, predominaram entre os diagnósticos. “O que se tinha em mente, até uns 10 anos atrás, é que o autista era aquela pessoa que balançava em pêndulo, balançava a mão, não falava. Era um autista clássico, digamos”.
O problema é que, em algumas situações, até mesmo quem deveria entender, acolher e orientar reproduz essas falas. Presidente da Comissão de Direitos das Pessoas com Deficiência e Autismo da OAB de Poá e fundadora da ONG Mães Azuis, Andrea conta que não é incomum que as famílias e os próprios autistas tenham os direitos prejudicados por capacitismo.
“Um exemplo é que muitas famílias em situação de vulnerabilidade vão procurar o BPC [Benefício da Prestação Continuada, pago a pessoas com deficiência] e, as vezes, os médicos que atendem essas crianças nas perícias não são especializados e já descartam o autismo por não conhecer a amplitude do espectro”.
“Eles pensam que a criança, se olhar no olho, se falar, já não é autista. [Pensam que] se fala bem, não é autista. Muita gente precisa entrar na justiça pra conseguir passar com médico especializado. Tem até professor, diretor de escola, que quer recusar laudo médico. A criança é avaliada por um profissional capacitado e a escola se acha no direito de negar. Hoje a gente tenta conscientizar sobre isso”, aponta.
"Seu filho não é autista, é mal educado"
Luan Ronaldo tem 10 anos e é filho da confeiteira Roselane
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Roselane Gomes da Silva é mãe de Luan Ronaldo, de 10 anos, e viveu na pele a situação descrita por Andrea. O diagnóstico do filho veio cedo e, aos 6, ela percebeu que o menino precisaria de um professor auxiliar. Levou os laudos, mas ouviu que deveria ouvir outro médico. Foram para a consulta, mas não receberam o atendimento que esperavam.
“O médico questionou o motivo de eu querer auxiliar. Disse que meu filho não era autista, que ele estava olhando nos olhos, não estava babando. Eu perguntei a especialidade dele, ele falou que não era especialista em autista. Disse que meu filho, no máximo, era mal educado”, relembra.
Na época, o pedido foi negado, o que atrasou o aprendizado do menino. Hoje, aos 10, não escreve e nem lê. O professor auxiliar, que é um direito das crianças com deficiência, só começou a acompanhar Luan neste ano. Para a mãe, é preciso que os setores se atualizem. Mais ainda: que a sociedade tenha empatia e julgue menos.
“Uma vez eu entrei na fila preferencial e uma mulher me cutucou, mandou eu sair. Eu falei que não ia sair porque meu filho é autista e ele não aguenta ficar no mercado. Ela pediu desculpa e disse que ele não parecia autista. As pessoas não conhecem e ficam julgando”.
"Não brinca com isso"
Lui Valverde, de 24 anos, recebeu o diagnóstico na vida adulta
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Se com as crianças a falta de compreensão já é barreira, entre os autistas adultos e de alto funcionamento pode ser tão difícil quanto. “Já ouvi "não brinca com isso" quando contei que sou autista, porque eu falo sobre muito numa boa. As pessoas, às vezes, acham que não é sério. O melhor é que falam assim: "não brinca com isso", como se fosse algo horrível, que não deve nem ser falado”, relata Lui Valverde, de 24 anos.
“Acontece muito também de quererem explicar que eu não sou 'autista mesmo" por isso ou aquele motivo, basicamente, querendo me explicar autismo com um monte de estereótipos. [Falam do autismo para mim] comentando de algum "primo de vizinho de uma conhecida" que é autista não verbal e que, aí sim, é autista de verdade”.
O TEA é classificado pelos níveis de suporte que o paciente necessita para viver bem e desenvolver suas tarefas. Lui está no nível 1, que é a menor em uma escala até 3, mas isso não diminui suas limitações, como a hipersensibilidade sensorial, por exemplo. Apesar disso, o jovem relata que deixa de usar recursos de acessibilidade, como filas preferenciais, por receio.
“Cria-se uma cultura de sofrimento. Muitas vezes, prefiro não utilizar um serviço preferencial a qual eu tenho direito, pois o estresse de ter que lidar com a falta de informação e agressividade das pessoas acaba sendo pior. Também porque vira algo a ser escondido, como se as pessoas quisessem que eu fingisse não ser autista”, relata.
"Mas você é normal, como pode ser autista?"
Empresária Thais Martyr só descobriu que estava no espectro aos 36 anos
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Thais Martyr, de 37 anos, também convive com a invalidação de seu diagnóstico. Principalmente porque seu perfil profissional dificilmente seria associado às pessoas com TEA, o que é um engano. É formada em gestão de pessoas, tem pós-graduação e MBA na área de negócios e, ao lado da esposa, é proprietária de franquias odontológicas. Somando funcionários e fornecedores, administra mais de 70 pessoas.
“Todos os meus familiares duvidaram. Ninguém acreditou e disseram que eu não precisava fazer testes, que eu só era estranha. Eu sou muito reclusa, mas questionaram como eu poderia ser autista e ter feito tantas faculdades, ter uma empresa, ser casada. Eu já ouvi: "mas você é normal, como pode ser autista?". As pessoas pensam que autistas tem que ter um visual específico, de olhar e já achar que a pessoa tem algo diferente”.
A empresária só se deu conta de que poderia estar no espectro depois que uma amiga médica, mãe de uma menina autista, sugeriu que fizesse uma avaliação. Com o positivo, encontrou respostas para a dificuldade de socialização, a racionalidade e o comportamento que os mais próximos costumam chamar de "falta de emoção". Embora o diagnóstico faça sentido, Thais diz que vive uma rotina de explicações.
“É chato porque as pessoas ficam duvidando do que você é. Eu digo: "sim, eu sou autista". É chato, desagradável, ter que justificar o que eu sou. As pessoas vêm com ideias cheias de pré-conceitos. O que falta mesmo é o interesse das pessoas. É querer saber sobre a diversidade dos comportamentos”.
"Você não tem cara de autista"
Fernando Silva é homem trans, autista, e recebeu diversos diagnósticos até se descobrir autista
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O diagnóstico que só vem na vida adulta, aliás, também é uma consequência da falta de informação. O que poderia se resumir em um "antes tarde do que nunca", acaba virando sinônimo de uma incerteza que atrapalha um direito básico a todo ser humano: a dignidade. Ao longo da vida, Fernando Silva se sentiu deslocado, diferente. A dificuldade de socializar, o medo da imprevisibilidade e a hipersensibilidade – que transformava o toque do telefone em tortura – o fizeram perder empregos.
Sem respostas, se viu em depressão e desenvolveu ansiedade. Foram, pelo menos, nove especialistas diferentes até descobrir que estava no espectro autista. Um alívio. No entanto, os quase 40 anos à espera de uma explicação pesaram e hoje são como uma ferida que falta não fechar. Fernando tenta se conhecer e orientar quem está ao seu redor.
“Eu falo que o diagnóstico me libertou. Foi muito bom, porque hoje eu sei. Eu tive a resposta, mas ao mesmo tempo é uma granada que a gente segura na mão sem o pino, porque eu nunca sei como vai ser meu dia. Às vezes, uma coisa simples me desregula, me faz entrar em crise. Eu levo um bom tempo pra me regular novamente e passo por dias ruins. Eu passo dias com dor no corpo, dias com enxaqueca. Tem dias que eu não consigo nem falar”, comenta.
“Boa parte das pessoas te tratam diferente quando você fala que é uma pessoa autista. Eu não sei se é falta de informação. Eu também tenho uma grande invalidação pela minha aparência, por ter tatuagens, por ter brinco, por falar, principalmente. As pessoas falam que eu falo bem, que eu não tenho cara de autista. Ou então falam que é "levinho". Eu até questiono, o que é autismo leve? Porque eu desconheço. Eles não entendem como minha vida foi comprometida desde o começo”.
Não existe 'cara de autista'
Psiquiatra Davi Neves é autista e trabalha no diagnóstico de pessoas com TEA
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Segundo o Manual de Diagnósticos e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), o TEA é uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada pelo atraso ou a dificuldade da linguagem (incluindo habilidades de comunicação e socialização) e a rigidez cognitiva (o que envolve comportamentos repetitivos ou rígidos). Inclui ainda disfunções no processamento sensorial. E, embora sejam essenciais para o diagnóstico, essas características podem se manifestar de formas diferentes em cada paciente, o que faz com que cada autista seja único. É exatamente por isso que a condição é chamada de espectro.
Todos os entrevistados dessa reportagem são classificados como autistas de nível 1 e alguns deles, antigamente, poderiam ser definidos pela Síndrome de Asperger, que deixou de existir e passou a ser entendida como parte do autismo, como explica o psiquiatra Davi Neves. "Eram aquelas pessoas funcionais, que não tinham um comprometimento tão importante e nem eram tão estereotipadas. As pessoas esperam que o indivíduo seja aquele clássico de estar quietinho, sentado numa cadeira, balançando para frente e para trás, sem acompanhar o olhar, ou que ele não se comunique de forma alguma, não consiga se expressar. Isso não é bem assim".
O médico, que é autista e hoje atende pacientes que, assim como ele, só receberam essa confirmação quando adultos, reforça que embora não sejam tão evidentes, essas características não diminuem o sofrimento causado pela falta do diagnóstico ou pela invalidação dele. Afirma também que é comum que as pessoas procurem o consultório após desenvolver comorbidades, como depressão, ansiedade e até Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Problemas que sequer se desenvolveriam se o autista descobrisse a condição e fosse respeitado ainda na infância. Outro ponto que chama atenção, segundo o médico, é que não são poucos os que se forçam a desenvolver habilidades sociais, mascarando as dificuldades, para se adequar. Uma prática que causa ainda mais sobrecarga.
“Quando eles estão na escola, vão do pré ao ensino fundamental e médio com as mesmas pessoas. Então, ele vai usando alguns coleguinhas para fazer ponte para arrumar outras amizades. Não é percebido que eles não fazem amigos. Quando você perguntar, vão dizer: "não, mas ele tem bastante amigo". Mas tente trocá-lo de sala ou de escola. Logo se percebe que ele não consegue fazer novas amizades”, comenta. “Eles acabam casando, chegam a ter filhos. Daí quando tem um filho no nível de suporte 2, que pode acontecer, percebem que também tinham o diagnóstico, mas não sabiam, pois foram criando jeitos de se desvencilhar dessas dificuldades”.
“Não é porque ele não tem a [suposta] cara do autismo que ele não tem o sofrimento. Ele tem aquela sobrecarga sensorial de sair de casa, de enfrentar uma fila de banco. Tem a ansiedade social. Continua sentindo coisas que estão dentro do espectro. Como não é algo visível, as pessoas desconsideram”, ressalta. “Inúmeros pacientes chegaram até mim com o relato de ter procurado o psiquiatra pra fazer uma investigação e o psiquiatra simplesmente fala: já teve namorada? Namorou. Você estuda, se formou? Se formou, fez até o terceiro grau. "Então você é inteligente, tem empatia, não pode ter autismo". Mas não é esse tipo de comprometimento que a gente procura no suporte 1. Não se resume simplesmente a isso”.
Ainda segundo Davi, além da conscientização de toda a sociedade, faltam profissionais capacitados e livres de preconceito que enxerguem o autismo além dos estereótipos. A esperança é que, assim, pessoas com TEA sejam diagnosticadas mais cedo e tenham seus direitos assegurados. “O que define o [aumento no] número de pessoa autistas hoje pode sim ter uma variação genética que está levando a um número maior. Não fica muito claro se hoje se tem mais autistas. [O que] fica claro que hoje temos mais diagnósticos, temos mais profissionais habilitados. A gente tem ainda um déficit gigantesco de profissionais que trabalham nessa área, mas já se tem bastante pessoas habilitadas”, pontua. “Talvez, no futuro, a gente tenha poucas pessoas que cheguem na idade adulta sem esse diagnóstico”.
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