Apesar de ser uma preocupação, o La Niña não deve trazer reflexos tão severos neste ano, apontam especialistas ouvidos pelo g1. Principal temor é que o fenômeno provoque longos períodos de seca, esvaziando reservatórios e elevando os custos com energia elétrica. Especialistas acreditam que La Niña não deve trazer reflexos tão severos nos preços dos alimentos este ano.
Adriana Toffetti/Ato Press/Estadão Conteúdo
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Além do noticiário climático, o El Niño ganhou protagonismo também nas últimas divulgações da inflação oficial do Brasil. O regime mais intenso de calor e chuvas provocado pelo fenômeno prejudicou parte da safra de alimentos in natura, o que fez os preços nos supermercados dispararem.
A previsão é que, neste mês, o El Niño chegue à sua fase final. Mas outro evento climático começa a entrar em cena: o La Niña.
A chegada do novo fenômeno está prevista para acontecer a partir de agosto deste ano. Em resumo, o La Niña é conhecido por inverter a região de predomínio de secas e chuvas em relação ao El Niño.
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O El Niño é caracterizado pelo aquecimento das águas do Pacífico em 0,5ºC ou mais. Ele costuma levar chuvas intensas ao Sul do Brasil e provocar seca na região Norte.
O La Niña acontece quando o Pacífico está ao menos 0,5ºC abaixo da média histórica, trazendo o resultado inverso: chuvas intensas no Norte e Nordeste e estiagem na região Sul.
Economistas ouvidos pelo g1, contudo, trazem o alento de que a expectativa inicial é que os reflexos do La Niña sobre os preços sejam menos prejudiciais do que suas versões anteriores.
O registro mais recente do La Niña durou três anos (2020-2023) e, conforme mostrou o g1, causou fortes impactos na produção agropecuária. O resultado foi percebido no bolso do consumidor com o aumento dos custos no campo e a consequente pressão sobre a inflação.
A falta de chuvas resultou, inclusive, na declaração de emergência por municípios localizados no Centro-Sul do país — região que concentra as principais produções rurais —, com reflexos em alimentos como milho, soja, frango, feijão, leite e carne bovina.
A estiagem, característica histórica do La Niña, também pode causar um aumento generalizado nos custos de energia elétrica, apontam especialistas. Isso devido à diminuição do volume de água nas represas e à consequente redução da produção de energia nas hidrelétricas. O receio é justamente em relação ao Centro-Sul, que concentra cerca de 70% da capacidade de armazenamento de água do país.
Apesar dos temores baseados no histórico do fenômeno, entretanto, o que se espera para este ano é um La Niña menos prejudicial tanto para as lavouras quanto para os reservatórios, com reflexos mais leves sobre os preços para o produtor e o consumidor final ao longo de 2024.
O cenário menos pessimista ganhou força com a crença de que o evento climático deve ter uma transição mais suave, com maior probabilidade de ocorrer só a partir de agosto. Além disso, o período recente de chuvas ajudou na umidificação do solo e na manutenção dos reservatórios, aliviando o caminho para os próximos meses.
As boas condições de produção em outros países — como a vizinha Argentina — também ajudaram nessa equação, colaborando com o controle dos preços de commodities como soja e milho.
Diante desses e outros fatores econômicos, a previsão para este ano é de uma inflação de alimentos ainda controlada, inclusive com um processo de deflação (queda nos preços) para essa categoria entre maio e setembro, segundo projeção da Warren Investimentos.
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Balanço do El Niño
O último registro do El Niño havia sido oito anos atrás, entre 2015 e 2016. O fenômeno costuma preocupar a produção agrícola global. Mas, em alguns casos, as perdas de alimentos cultivados em determinadas partes do mundo podem ser compensadas pelo aumento da produção em outras regiões, dadas as condições climáticas distintas que sofrem com o fenômeno.
"Em geral, o El Niño é ruim para o nosso Centro-Oeste, para a Austrália, para a Índia. E, de fato, nós vimos diversos acontecimentos nesse sentido, como a quebra da nossa safra de grãos", explica Felippe Serigati, pesquisador do FGV Agro. "As chuvas tardias, por outro lado, ajudaram a aliviar."
Em 2023, o mercado esperava um El Niño com impactos "muito mais fortes" do que o registrado. Andréa Angelo, estrategista de inflação da Warren Investimentos, afirma que as projeções eram de uma versão semelhante à de 2015 e 2016, quando o fenômeno causou "efeitos devastadores" nos preços de alimentos.
"Embora o El Niño atual tenha sido classificado climatologicamente como forte, o efeito dele foi pequeno quando observamos os reflexos na inflação", diz.
"Nós estamos vindo de algumas safras recordes de grãos. Além disso, o fenômeno foi muito benéfico para a Argentina. Então, o que quebrou ou prejudicou safra por aqui, o país vizinho mais que supriu a oferta."
Ao mesmo tempo, a economia mundial observou uma desaceleração do consumo na China. Com a queda na demanda de um parceiro comercial tão importante, o resultado foi uma sobra maior de produtos no Brasil, ajudando a equilibrar os preços por aqui, explica Andréa.
Apesar dos impactos mais suaves no índice geral, algumas altas passaram a pressionar os preços no subgrupo Alimentação no domicílio do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE).
Os dados mostram aumentos importantes nos preços a partir de outubro de 2023, sendo que as maiores altas foram sentidas nos lares brasileiros entre dezembro e fevereiro, conforme as variações a baixo:
Entre os vilões da elevação do índice, estão os alimentos in natura, como hortaliças, legumes e frutas, tradicionalmente mais atingidos nessa época do ano devido a fatores climáticos.
"Entre janeiro e fevereiro, a inflação no domicílio acumula quase 3% de alta. Apesar de comuns nesse período do ano, as altas foram muito maiores do que o sugerido pela sazonalidade. Então, isso é o El Niño", explica Andréa, da Warren.
A expectativa da Warren é que o subgrupo de Alimentação no domicílio do IPCA encerre 2024 com inflação de 4,8%. Já para o índice geral de preços, a projeção é de variação de 3,85% no ano.
O efeito do El Niño no aumento de preço dos alimentos
Período de transição
Para Gabriel Pestana, analista econômico da Genial Investimentos, a curta duração do El Niño ajudou a amenizar os reflexos do fenômeno.
"O balanço dos impactos do El Niño é negativo. Mas esperávamos que fosse muito pior. O rápido arrefecimento do evento climático foi, de fato, uma boa notícia", afirma.
O fenômeno começou a perder força em abril deste ano, conforme apontam órgãos internacionais de monitoramento climático. A instituição norte-americana NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration), por exemplo, aponta que a probabilidade de o El Niño ocorrer no trimestre a partir de maio é de 7%, caindo a menos de 5% nos trimestres móveis seguintes.
A projeção também mostra a predominância de um cenário de neutralidade entre abril e julho. Enquanto isso, o La Niña ganha mais espaço a partir do segundo semestre, com chances de 60% de ocorrer entre julho e setembro e de 74% entre setembro e novembro. (veja no gráfico abaixo)
A previsão, claro, pode sofrer alterações. Mas o cenário que se desenha é o de uma mudança suave, com uma transição ancorada, por meses, em um período de neutralidade — ou seja, temperatura nem acima nem abaixo da média no Oceano Pacífico.
"Essa projeção já aparece também nos mapas climáticos. Em setembro, era para começar a vir chuva, para iniciar o plantio. Mas cadê as chuvas? Não estão nas previsões. Ou seja, isso é a cara do La Niña", explica Felippe Serigati, do FGV Agro.
As altas chances de fortalecimento do fenômeno em outubro deixou, inclusive, agricultores argentinos em alerta, conforme relatório publicado em março pela bolsa de grãos de Rosário.
O país é um dos maiores exportadores de grãos do mundo. Possíveis secas provocadas pelo La Niña no fim do ano afetariam parte da safra de trigo e o plantio de milho e soja para a próxima safra 2024/25. "A informação é preocupante", informou a bolsa.
La Niña e seus reflexos no campo
Com base nos registros históricos do La Niña, a previsão é que, quando efetivamente em vigor, o fenômeno leve chuvas acima da média às regiões Norte e Nordeste do Brasil e cause seca no Centro-Sul.
Levando em conta a safra já em vigor e o período de transição entre os fenômenos, os impactos nas produções agrícolas do Brasil tendem a ser moderados este ano, conforme aponta Serigati, da FGV Agro.
A análise do especialista para algumas safras 2023/24 é:
Soja: Produção menor, mas sem reflexos nos preços, já que a Argentina está com uma boa safra.
Milho: Possíveis perdas, mas de uma forma moderada, tendo em vista que muitos produtores plantaram antecipadamente. Além disso, a Argentina vem tendo bons resultados e os Estados Unidos também têm chances de uma boa safra.
Açúcar: A safra atual de cana-de-açúcar não foi muito afetada, e o La Niña tende a favorecer essa cultura.
Arroz: Em nível global, a produção de arroz não tende a ser prejudicada pelo La Niña. No Brasil, no entanto, os efeitos podem ser negativos, devido à sua cultura ser concentrada no Rio Grande do Sul.
Feijão: O grão é produzido em diversas regiões do país, com destaque para o Paraná, Goiás e Bahia. Isso significa possíveis maiores perdas no Paraná, mas produtividade maior em Goiás e na Bahia.
"Chuvas demais ou secas tendem a gerar perdas e, portanto, custo maior na produção de alimentos, incluindo cereais, leguminosas, oleaginosas, tubérculos e frutas. Os preços das carnes também sentem os reflexos, já que a ração fica mais cara", explica Gabriel Pestana, da Genial Investimentos.
Apesar de previsão de enfraquecimento, efeitos do El Niño devem ser sentidos até abril
E os preços nos supermercados?
Apesar dos diferentes impactos para cada produção agrícola, a expectativa é de deflação (queda nos preços) para o subgrupo de Alimentação no domicílio do IPCA nos próximos meses.
A projeção é da Warren Investimentos, que aponta preços mais baixos já a partir de maio — em especial para os que subiram muito no último trimestre. Segundo a estimativa, as quedas devem ser registradas mês a mês, até setembro.
Os cálculos valem, claro, desde que as condições climáticas e econômicas sigam os rumos já esperados.
A previsão para a janela de maio a setembro, segundo a Warren, é a seguinte:
Deflação de 1,60% no grupo de alimentação no domicílio;
Deflação de mais de 20% entre os tubérculos (batata, mandioca, cenoura e afins);
Deflação de 1% nas frutas;
Deflação de 15% nas hortaliças folhosas;
Deflação entre 2% e 2,5% nas carnes;
Deflação de 4,5% no grupo das carnes com a inclusão de ovos.
Estiagem e custo de energia elétrica
Enquanto os preços dos alimentos deixam de ser uma grande preocupação para este ano, a chegada do La Niña também acende um alerta para possíveis reflexos nas contas de energia elétrica e no abastecimento de água.
O receio é justamente que os períodos de seca ganhem força no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul do país, regiões que concentram 70% dos reservatórios em território nacional, afirma Gabriel Pestana, da Genial Investimentos.
"Esse é outro fator que torna o La Niña um pouco mais preocupante do que o El Niño em termos de impactos", diz. "Se temos reservatórios mais vazios, fica mais caro produzir energia elétrica — categoria que pesa bastante no IPCA —, podendo exercer uma pressão importante sobre o índice."
Esse também é um alerta destacado por Andréa Angelo, da Warren Investimentos. Ela aponta efeitos secundários na inflação, com possíveis reflexos no setor de serviços — o que mais emprega no país e representa 70% no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
"O preço muito elevado de energia acaba encarecendo os serviços depois de algum tempo, já que os custos tendem a ser repassados ao consumidor. Além disso, uma possível alta na conta de luz pode afetar, por exemplo, os preços dos eletroeletrônicos. Então, caso a gente tenha um La Niña mais forte com reflexos na energia, bens industriais e até de vestuário podem ficar mais caros", explica.
Com base nas previsões disponíveis até o momento, espera-se que os maiores impactos do fenômeno nos preços fiquem para o início de 2025, em caso de estiagem mais severa no Brasil no último trimestre deste ano.
"Inclusive, o Operador Nacional do Sistema Elétrico [ONS] já informou que está em alerta e gerenciando os sistemas hídricos. A atenção é para que a gente entre em 2025 em uma situação diferente do que foi 2021, quando tivemos crise hídrica", conclui a especialista.